06/09/2016

setembro 06, 2016
2

Até que ponto somos reais conosco, com o outro e com o mundo a nossa volta? Quanto de nossas atitudes reflete a verdade dentro de nós, e quanto recebemos de verdade do mundo onde habitamos?

No mundo que enxergamos como real, muito do que há pode não passar de figuração, desvio e inexatidão. Podemos quase viver, quase sermos felizes, quase amar e quase sermos reais. E é assim que se dá a vida das personagens de Contagem regressiva (2014), livro de Vanessa Maranha, onde tudo é quase o que parece ser, como tentarei mostrar a seguir.

Numa visão geral, o livro que apresenta de trás para frente a história de seu protagonista — começa pelo capítulo III, que seria o último (fase idosa), e vai até o I (fase da infância) —, numa espécie de inventário regressivo de vida que justifica o título do livro.

Contagem regressiva se inicia num hospital de saúde mental onde João, protagonista, interna-se voluntariamente, e onde muita observação da vida e do outro lado da sanidade e da loucura se faz presente, questionando também até que ponto os loucos são loucos.

Na fase adulta João rumina sobre sua condição, seus amores perdidos e atuais, seus filhos e o mundo ao seu redor; na fase infantil, quando menino inventivo e um tanto sádico, mata lesmas para bancar o deus ou, como diz Ovídio Poli Junior na orelha do livro de Maranha, é “um homem que em criança perseguia um antídoto contra a morte”. Ou ainda, talvez matasse procurando determinar o momento de morte e ressurreição das cobaias.


Na infância, seu maior parceiro, e pai postiço, foi o anjo Nicolau (parte fantástica do livro). Velho e de linguagem incompreensível, era o amigo imaginário do garoto, apesar de poder ser visto pelas outras crianças mais próximas a João e por sua Tia solteira e festiva, Palmira, que, num clima de Garcia Márquez, um dia se casa com o anjo. Talvez a possibilidade do anjo ser visto por outros se desse para aqueles que se permitiam sonhar.

Com Nicolau João aprende sobre a perda na forma da partida, ou da morte, quando o anjo se vai, tornando-se transparente. Fato que pode simbolizar o amadurecimento de João, largando as crenças infantis com o afastamento do amigo mágico.

O mundo narrativo se passa quase que completamente na mente do protagonista como num fluxo de consciência. E tudo se dá de forma organizada, colocando o leitor progressivamente na mente de João e na sua vida, enquanto o livro se desenrola, levando o leitor a conhecer outros personagens que, de alguma maneira, entraram em contato com João;

Esses outros personagens possuem menor presença no texto, mas, mesmo não tendo grande ação pessoal ou individual na narrativa, concedem mais vida ao texto como escadas para a maior exposição e compreensão da personalidade de João, o que também torna o livro mais rico nessa fase da infância, com mais ação e dinamismo; sobretudo devido a esses personagens de apoio.

Contagem regressiva trata-se de um livro rico em psicologia humana, em relacionamentos amorosos, familiares ou amicais, revelando personagens que perderam algo pelo caminho, que não foram felizes e não se adequaram ao mundo, seja pelas circunstâncias seja pela obra maléfica de outro ou por sua própria conduta condescendente consigo mesmo.

Enfim, tudo isso é parte do livro, mas o que mais me chamou atenção foram as características imprecisas e líquidas que permeiam quase todas as páginas. Nada parece ser o que pode ser, tudo é frágil, tudo é quase certo. E como já indiquei no início deste texto, é sobre esse quase que quero tratar.


Enquanto adulto

Nesta fase se dá o momento mais agressivo de João, no que diz respeito a sua visão do mundo, ao que sente e como se comporta.

A falta de exatidão do mundo está em todo lugar, e tomamos conhecimento dela desde o momento em que o protagonista se interna por vontade própria no hospital. Nesta ocasião, quando a enfermeira, ainda preenchendo seu cadastro de entrada no hospital, pergunta-lhe se tem esposa, sua resposta é dúbia: “Disse que várias e nenhuma. Foram-se, extinguidas como fogueiras breves e me deixaram esses não–filhos” (p. 15, grifos meus).

Contudo, apesar de imprecisos, vale salientar que esses quases não significam incorreção. No caso acima, por exemplo, a resposta é dúbia, mas não inexata. Ele casou-se várias vezes e, no momento, não tem nenhuma esposa, bem como com seus filhos não tem muita intimidade. Assim, o vago da resposta é o vago real da sua vida, por isso, essa sensação de realidade forjada é parte integrante dela, e não só uma reação proposital dele.

À frente temos mais desses quases. Observando o prédio onde vai ficar internado, João descobre paredes e outras coisas “falsificadas”: “infiltrações em mofo disfarçado por tinta nos ângulos, flores plásticas sobre mesinhas” (p. 16, grifos meus). E mais à diante descreve um psiquiatra que lhe entrevista, em sua opinião, também tomado pelo disfarce: “Penso que deve haver nessas faculdades algum módulo que os ensine essas expressões postiças, esses olhos fraternos, essa voz pastosa e monocórdia, como se se elevassem, lúcidos, alguns degraus acima dos mortais loucos” (p. 16, grifos meus).

Nesses exemplos acima o próprio prédio é parte dessa vida de farsa que parece difícil de ser extinta, remediada, pois o mofo não foi extirpado da parede, foi disfarçado com tinta, encoberto como se faz com os problemas da vida difíceis de resolver, feito aqueles que fingimos sanados, mas que continuam submersos logo abaixo da superfície, pronto para saírem novamente. Além disso, há as flores plásticas, tão falsas quanto a vida que João levou e a cura da insanidade naquele local.

Ainda no mesmo plano das falsidades, os médicos que estão ali supostamente para uma cura ou para trazer os doentes à realidade, oferecem a estes “expressões postiças”, fingindo superioridade, representada no “como se”, dito pelo narrador no exemplo que citei acima, pois este “como se” não é real, é algo que “se faz de”, que pretende parecer, mas não é. Enfim, no manicômio, como o descreve João, nada é o que parece ser.

Voltando ao psiquiatra que o atende na ocasião, na mesma conversa, um pouco mais à frente, ele sugere a João a mudança para o que chama de casa de repouso, o que para o paciente não passa de mais uma farsa: “O doutor não está com eufemismos para evitar dizer asilo de velhos?” (p. 17, grifo meu).

Mas a falsidade e as aparências não param por aí naquele hospital. Os pacientes também são parte disso, há algo dúbio neles que vai além do fato de serem loucos, há uma deformação na imagem simplista de que seriam apenas loucos sem mais a se ver, como se pode perceber nos exemplos a seguir.

Em certo momento uma velha sorrir para João um sorriso sem dentes. E sendo os dentes uma parte importante do sorriso, a falta deles, por si só, já  tornaria o sorriso algo dúbio. Mas vai além. Na descrição da velha, João diz que ela é “a imagem acabada do fim, ou alguma espécie de desenho errado”, e completa, “Mas, às vezes, mesmo um sorriso desdentado abraça. E há abraços amarelos que são coisa nenhuma” (p. 19, grifos meus).

Tudo nessa fala parece ser uma metáfora da falsidade da vida, do engano em que vivemos. A expressão “desenho errado” é muito usada para se referir a uma pessoa feia — “ela é mal desenhada” —, o que se configura em algo imperfeito, que foge aos padrões. E aqui não me parece ser diferente. Assim como os abraços amarelos, por si só já falsos, sem graça, mas potencializados na fala do narrador pela afirmação de que, mais do que simplesmente falsos, são mesmo “coisa nenhuma”.

Tudo bastante peculiar ao ambiente do hospital e a seus moradores como fica claro numa das observações e descrições, numa fala quase poética, de João ao dizer que sob o efeito das drogas aplicadas ali os pacientes se portam como cães obedientes, “Juntos-sós” (p. 17).

São tipos representantes da solidão, vítimas das drogas que mesmo vivendo em grupo não estão acompanhados, estão sós. O “juntos-sós” é outra dicotomia da farsa, do irreal, do quase (quase juntos). Uma falsa imagem de comunidade, mesmo de presença, que, a primeira vista, mascara a verdade de que cada um ali está de fato só, absolutamente só.

Mais à frente, dentre as muitas elucubrações e observações que João faz do ambiente e de seus colegas de internação, observando uma paciente gorda, ele filosofa sobre o corpo e sua capacidade de falsear-se. Diz: “O corpo, aliás, conta a história de uma pessoa, ainda que guarde em si a capacidade de ser ilusório. Mas, mesmo quando ilude, o corpo diz. Já os olhos delatam, quase gritam, esses traiçoeiros” (p. 21, grifos meus).

Nesse trecho há duas questões que quero comentar: a primeira é sobre o falso, uma das faces do quase, meu objeto de análise neste texto. João diz que o corpo ilude, mas que mesmo iludindo diz algo, o que nesse caso parece ser uma ação discreta, fazendo desse verbo, “diz”, algo suave e de pouca força, se compararmos ao que fazem os olhos. E esse é meu segundo ponto. Os olhos “delatam”, “quase gritam”, portanto, são muito mais fortes, incisivos e agressivos do que o corpo. Assim, uma vez que são tão claramente nítidos, tanto a verdade quanto as intenções parecem ser tão evidentes neles que poderiam não falsear nada, e aparentemente não falseiam, pelo menos não na visão declarada por João.

Contudo, mesmo nessa cadeia de transparência propiciada pelos olhos, o texto, ou melhor, o próprio João ainda faz uso do engodo, do contrário, do negativo. Ele chama a esses olhos que tudo transparecem de “traiçoeiros”, ou seja, sendo verdadeiros, traem seu dono; se não mentem para aquele que os veem, mentem, enganam seu dono que é traído por si mesmo através dos próprios olhos. E assim, mesmo o que é verdadeiro ao outro é engano a alguém, nesse caso, ao dono dos olhos.

E para complementar a observação, assim como os olhos, “a forma como alguém se move ou não se move é enredeira idem” (p. 21), também diz João. Tudo dentro do mesmo âmbito da denúncia despropositada, assim como os olhos.

Ainda falando de João, seus filhos são parte do engano, da falsidade, segundo ele acredita. Na primeira visita que recebe deles, “a americanizada, o fujão, o medroso e a antissocial” (p. 27), segundo sua descrição, depois de ouvir as perguntas do porquê de ter se internado ali e a frase “Mas podia nos ter pedido socorro”, tudo o que esse pai percebe é que “Ouvir essas palavras é enfrentar a medida da hipocrisia e do cinismo de que somos capazes” (p. 27).

Seus filhos sempre foram distantes. Conforme o pai vê, fracos, interesseiros e merecedores de todos os descréditos, o que faz com que sua atual generosidade e preocupação não o convençam. São sentimentos falsos, mentiras, desvelos que caem na sua descrença, representada pelas palavras “hipocrisia” e “cinismo”, utilizadas pelo próprio João.

Mas sua relação com os filhos, como ele mesmo admite, é também culpa sua.  Nunca quis ter filhos e se manteve distante dos seus, com os casamentos breves que sofreu e os muitos desvios que tomou, o que lhe fez também se assemelhar ao pai que teve, ou melhor, como ele diz, “pai que tive-não-tive” (p. 28). Diante disso, voltando a Ovídio Poli Júnior, João era “ressentido pela ausência do pai”. E isso parece ter se tornado um espelho indevido e inesperado na personalidade de João.

É sempre assim na sua vida, as coisas quase são ou quase não são. Nada é realmente completo e íntegro. Com seu próprio pai, João viveu uma relação de ausência, de não paternidade como é mostrado na parte do romance que retrata sua infância, quando seu pai vai embora, depois de ter sido um homem distante, mesmo vivendo com ele; o que já se configura numa outra forma de ser não sendo, como tudo que tenho retratado até aqui. Questão que veremos mais detalhadamente à frente.

Agora sendo pai, tendo seus próprios filhos, João também é-não-sendo. É quase pai, é uma possibilidade que nunca se configurou. Mais um traço do quase na sua história.

Esses quases também se estendem aos seus amores como no caso de uma das suas esposas, chamada Antônia, quando o deixou, depois de suportar por algum tempo a sua frieza e afastamento. Como ela mesma disse, no momento em que abandonava João: “meio amor é amor nenhum” (p. 33, grifo meu).

Para um homem que vive tantas situações incompletas, falsas e rasas, amar não poderia ser uma coisa completa, e pelo menos até aqui não foi. Tudo o que dava a sua esposa era metade do que deveria sentir; o que, na concepção da esposa que parte, é nada. E assim a vida segue incompleta para João e para aqueles ao seu lado.

Mas esse mundo falso e frágil de João extrapola seu próprio ser e universo que depende exclusivamente de si. Mesmo o que está fora dele e do seu domínio surge na forma rarefeita do quase, do engano – pelo menos segundo ele vê.

No hospital onde se internou, que chama de hospício, a terapia a que é convidado a participar é descrita por ele como uma “seita sofisticada, filosófica. [...] uma franquia máster de um Freud deturpado, embora o tratassem como totem, seus textos sacralizados, a obscuridade de rebanho e patrulha miliciana que o verdadeiro Freud desaprovaria” (p. 35).

Nessa citação, alguns pontos reforçam o caráter de falsidade e desvio da verdade. De fato, todo o contexto e a forma como as frases dessa citação são elaboradas já apontam para isso, e se observarmos as palavras usadas veremos a força encontrada por Vanessa Maranha para alcançar esse tom. São elas: “franquia” que diz respeito a algo que se assemelha à sede, mas não é ela, portanto, não é o original, não é o real; depois temos a palavra “deturpado” que representa algo distorcido, deformado, degradado do real, do verdadeiro, adulterado, corrompido e — bastante conveniente — falsificado, que dispensa mais explicações dentro do contexto que aqui apresento.

Depois dessas vem “obscuridade”, que tem entre seus significados “incerteza” e “ambiguidade”, ambos desvios do objeto real. A primeira algo inconvicto, que pode ou não ser; a segunda, algo que pode ser duas coisas ou nenhuma delas, que vacila, uma insegurança, dúvida e até mesmo equívoco, portanto, impreciso como tudo que vimos até agora. E por fim temos a palavra “verdadeiro” que aqui aparece como uma contestação, uma certeza de que tudo o que é feito nessa terapia está longe da verdade, algo que seria desaprovado pelo terapeuta real, Freud. Logo “verdade”, nesse caso, é “inverdade”.

Assim percebemos que numa simples passagem como essa, uma descrição crítica do protagonista, podemos encontrar uma gama de revelações de dissociação do real.

Contudo, como um aprofundamento de todos os enganos, até aquilo que João pensa sobre si mesmo pode ser falso; inclusive o mal que a si atribui pode ser exagerado, segundo lembranças de seus filhos que, representados por Mauro, diz que João “não era quem agora pensava ter sido” (p. 36-7). Ou seja, segundo Mauro, quando o pai estava com ele e os irmãos, no passado, demonstrou afeto, preocupação e foi mais presente do que João julga ter sido.

Nesse engodo, nem as mais aparentes e fortes verdades, como aquelas que dificilmente julgaríamos falsas por se tratarem de auto-ofensas, estão livres do engano. E não é comum que alguém se autorrebaixe tão facilmente, principalmente para induzir o mundo exterior a um julgamento negativo de si mesmo, como faz João ao ver o mal em tudo e alegar falsidade nos filhos a partir do que ajuíza ser efeito do mau pai que ele julga ter sido. Enfim, as mais aparentemente reais verdades, na voz de João, podem ser mentiras, enganos para, talvez, legitimar seu mau-humor, sua visão nefasta do mundo. Do protagonista desse livro nem mesmo o escárnio que faz de si mesmo é garantia de sinceridade.

As características de quase de João me faz pensar num possível estado clínico do qual ele pode ser vítima. Estou me referindo à melancolia; mas não a romântica que se espraia pelas biografias de artistas excêntricos e ex-parceiros chorosos e silenciosos com o fim de algum relacionamento amoroso, estou me referindo à melancolia na forma de caso clínico descrito por Sigmund Freud em seu texto “Luto e melancolia” (1917). Segundo ele,

A melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminação e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante da punição (p. 47, grifos meus)

Observando a descrição de Freud, percebe-se, antes de tudo, que não se trata da melancolia como se costuma ser nominada hoje, um simples estado de silêncio, afastamento e tristeza poética que inspira artistas. Freud cita a melancolia como algo pesado, um estado clínico que vai além da depressão profunda. Esclarecendo isso, vamos em frente.

Não afirmo que o personagem João seja um típico caso clínico da melancolia apontada por Freud, mas em suas atitudes podemos ver claramente traços que nos remetem a ela, como os destacados nas partes que grifei na citação de Freud, por exemplo, a suspensão do interesse pelo mundo externo e a inibição de toda atividade.

João, já no início do livro, interna-se num hospital, fugindo do mundo, avesso às pessoas e as suas verdades, mentiras e comportamentos falseados. Quanto à perda da capacidade de amar, citada por Freud, João teve muitas mulheres, mas parece nunca ter se entregado a nenhuma, e agora se vê sozinho, desesperançado. Além disso, há o rebaixamento da autoestima, a autorrecriminação e os autoinsultos.

Não é só o mundo que agride João, mas a sua própria pessoa, sua própria história de vida: “Quando me tornei tal miséria, exatamente não sei” (p. 29), diz ele. Considera-se um fracassado como o pai: “Apenas seguia repetindo uma sina de infelicidade que eu não havia riscado, mas que, afinal, estava como herança. Vou sendo o meu pai, eu pensava” (p. 33). E isso o leva a julgar ser a pessoa que seu filho Mauro disse não ter sido antes, como vimos em citação anterior, bem como o leva a esses sentimentos que acabaram conduzindo-o ao “hospital de loucos”.

Ainda buscando traços da melancolia dentro da pessoa de João, em outra parte do mesmo artigo Freud diz algo mais que aproxima o melancólico desse personagem:

Se se ouvir com paciência as múltiplas autoacusações do melancólico, no fim não se deixará de ter a impressão de que as mais violentas dentre elas frequentemente se adéquam muito pouco à sua própria pessoa, mas que, com ligeiras modificações, se adéquam a uma outra pessoa, a quem o doente ama, amou ou deveria amar. [...]. Desse modo tem-se à mão a chave do quadro clínico, na medida em que se reconhecem as autorrecriminações como recriminações contra um objeto de amor, a partir do qual se voltaram sobre o próprio ego. [...]. Também o comportamento dos doentes fica agora muito mais compreensivo. Para eles, queixar-se é dar queixa no velho sentido do termo; eles não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmos, no fundo dizem de outrem. E estão bem longe de dar provas, perante os que os cercam, da humildade e da submissão que conviriam a pessoas tão indignas, pelo contrário, são extremamente incômodas, mostrando-se sempre como que ofendidos e como se uma grande injustiça tivesse sido cometida contra eles. Tudo isso só é possível porque as reações da sua conduta provém sempre da constelação psíquica da revolta, que depois, em virtude de um certo processo, se transportou para a contrição melancólica.” (p. 60-61, grifos do autor).

E completa:

[...]. Houve uma escolha de objeto, uma ligação da libido a uma pessoa determinada; graças à influência de uma ofensa real ou decepção por parte da pessoa amada, essa relação ficou abalada” (p. 61, grifos do autor)

Como eu disse antes, o quadro de João possivelmente não concorda em todos os pontos com um quadro de melancolia freudiana, falta-lhe o certo ar silencioso, acabrunhado, porém, outros pontos convergem como, além dos já citados, o fato de João se dizer um mau pai e se considerar uma miséria, enquanto se compara com o seu próprio pai que assim foi, parecendo que quando se deprecia, deprecia na verdade seu pai, o homem a quem amou ou deveria amar, como sugerido por Freud — ou pelo menos a esse pai se compara na forma de revolta com o mundo, esse pai que, como veremos mais à frente, foi um pai distante, difícil que abandou a ele e a sua mãe. Mãe que também não está longe de ter sua parte na culpa por quem é João, uma vez que foi uma mulher dissimulada e distante também, mesmo que de uma forma diferente do marido, como detalharei mais adiante.

Outro ponto convergente com a melancolia de Freud é a falta de humildade e submissão. Apesar de considerar-se uma miséria, João não se apequena perante os outros, ao contrário, mostra-se incomodado com a atitude desses, o que podemos perceber nas suas observações sobre o mundo ao seu redor e sobre a índole dos filhos como se tudo e todos fossem seres menores que o ofendessem.

Assim, João, como parte desse universo de ambiguidade e imprecisão encontrada no livro, diz ser alguém que talvez não seja. Acredita que dos trinta aos cinquenta viveu levado pelas circunstâncias, numa vida de escapismos, muitas vezes com “mulheres sorrateiras”, o que fazia com que grande parte das mulheres com quem viveu também se devotassem em obrigações por ele — ele que “não era amparo” (p. 83). Assim, segundo João mesmo se descrevia, era “Eu, um outro no meu lugar” (p. 83). Como numa forma de vida mecânica, automática onde aquele que vive não pensa, não sente, não é verdadeiramente presente, mas outro que se locomove movido pelas circunstâncias, configurando-se assim em mais uma falsidade, mais um quase, quase um marido, um homem, um ser vivente.

Mas não é só João e o ambiente do hospital que possui uma vida falseada no livro, outras personagens, noutros ambientes, também usufruem desses engodos como veremos a partir de agora nas observações do capítulo I (capítulo final) que se refere à infância de João.

Na infância

Na infância de João essa áurea de fragilidade do real e de falseamento já existia. Além do pai que vivia distante, até o dia em que foi embora, sua mãe também não estava presente, pelo menos não de mente e corpo como podemos ver a seguir.

Numa das passagens do livro a mãe de João faz bolos na cozinha, quando ele chega e a fica observando. Ela o enxerga, porém, como diz seu filho, “eu estou do lado de fora dela” (p. 130, grifo meu). Assim, ela não o vê realmente, como se João fosse transpassado por sua visão. A visão da mãe passa por entre o menino, e assim João quase existe.

Mais à frente, João se refere à mãe como culpada também pela partida do pai, o que João deduz, depois de conviver tanto com a mãe, descobrindo outro lado dela que não conhecia: a propositada surdez. De espírito aparentemente ausente, ela, assim como não escutava o seu pai, também não escutava o filho. E com essa atitude, sua presença na família, tal qual tantas outras coisas, não era real. Sua surdez fazia dela uma quase mãe, uma quase esposa. Uma mãe e esposa incompleta.

Diferente do pai, a mãe sempre colocava panos quentes em tudo, como se fugisse do conflito ou pouco lhe importasse o que ali ocorria, agindo sempre com uma doçura disfarçada, enquanto o pai, o Rei, como o chamava João, “era quem dizia as coisas chamando-as pelos nomes” (p. 155), botando para fora seu incômodo e revolta com tudo. Ou seja, a mãe era mais uma a mentir na sua vida, a burlar as coisas, a fugir da realidade, como diz João: “mamãe, na sua delicadeza infinita, punhal de afeto, não escutava ninguém de verdade” (p. 155, grifos meus).

Na expressão “punhal de afeto”, da citação acima, o narrador dá mais uma mostra da dualidade dessa mãe, unindo numa mesma construção algo que fere e mata a algo que acaricia e conforta, configurando-se em mais um estado de realidade duvidosa, falseada, na pele de uma mãe dissimulada e distante que fingia ouvir o marido, mas não o ouvia, que se entregava em delicadezas para não precisar ouvir, para fingir atenção, inclusive ao filho, a quem nem mesmo quando este dizia as coisas mais importantes ou perigosas, como declarar que sabia das “histórias cabeludas dela por aí” (a mãe tinha amantes), ela o ouvia.

Quanto ao pai, este era “um homem sempre em guerra, consigo próprio, com o mundo” (p. 134), descreve-o João. Um homem de vida infeliz que não assumia seu fracasso para não admitir que deveria ter percorrido outro caminho:

O meu pai tangenciava sem encarar a percepção do atalho equívoco que pegara na vida, o mesmo que o trouxera até este momento. Mas assumir a própria responsabilidade de ter percorrido tão obstinadamente o caminho errado significava pensar que poderia ter feito diferente, e tal dor implicava em que o melhor era ficar mesmo nas acusações aos outros (p. 134-5, grifos meus).

Se observarmos as palavras que grifei na citação, veremos que “tangenciava”, que tem como um dos significados “resvalar”, já dá a ideia de algo não propriamente exato, reto. É um caminho ao lado, algo que quase ocorreu. E “atalho” também pode significar “desvio”, que seria uma fuga do caminho original ou desejado. Mais à frente, ainda na mesma citação, vemos “diferente”, referindo-se a um caminho que poderia ter sido tomado, mas não foi. Enfim, tudo se refere a caminho nessa observação de João sobre o pai e seu caminho torto que o levou a uma vida quase.

Em outras partes do texto encontramos mais exemplos da vida quase de que falo. Num comentário de João que parece se passar na ceia de Natal em família, ele julga que “Por algum tempo, no decorrer da noite, parecia que sim, as pessoas se amavam” (p. 139, grifo meu). Mas percebam o verbo, “pareciam”, ou seja, não eram. O que é comprovado no momento seguinte quando seu pai dá um soco na mesa para calar as avós, Palmira e Laura, com palavras feias, e sai para o quarto.

Noutra parte, quando o pai anuncia a separação da esposa, todos ficam calados, sem coragem de reclamar. João descreve essa condição estática como “não-fala”, e mais à frente, talvez se referindo ao pai, diz: “Eu ficava por imaginar se algum dia seria eu também assim, forte-fraco” (p. 140, grifos meus).

Nessas construções ambíguas “não-fala” e “forte-fraco”, encontramos a indecisão, a hesitação, o titubeio de querer falar mas não falar; o duvidoso, o impreciso, o indefinível, o obscuro de ser “forte-fraco”, enfim, outros casos de quase.

Mais tarde, para que sua tia Palmira se case com Nicolau, o anjo, uma espécie de amigo imaginário de João — sobre quem falo logo abaixo —, ambos, sobrinho e tia, mentem para a mãe de João a fim de evitar ir ao aniversário do Tio Joca, ficando em casa para a cerimônia de casamento. E para que tudo dê certo, o que ocorre é uma sucessão de fingimentos, “Finjo estar doente”, diz João, “tia Palmira finge cuidar de mim e mamãe finge acreditar” (p. 153).

Sobre esse anjo Nicolau, sendo ele uma figura importante na vida do menino João, vale uma apresentação e alguns comentários. Diz-nos João que Nicolau era

o anjo que vez ou outra descia para me fazer companhia no jardim imenso. Devia ter uns quinhentos anos, asas caídas de velhice, um voo engazopado, pele translúcida, olhos cor de violeta, um jeito inglês. Devia ser inglês o Nicolau. A sua língua de anjo em voz de harpa eu nunca entendi, embora o compreendesse perfeitamente (p. 94-95, grifos meus).

Na vida do menino, o anjo era como os amigos imaginários de muitas crianças, com uma diferença: enquanto os amigos imaginários só costumam serem vistos pela criança que o fantasia, Nicolau podia ser visto por outras crianças, assim como pela tia Palmira que, como vimos, casa-se com ele. Uma cena típica de Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez.

E claro, na figura do anjo, não poderia faltar o quase, a meia verdade, já bastante nítida no simples fato de sua existência mágica entre crianças e adultos e de suas características, bem como das características percebidas por João nele, entre elas, como visto ainda na citação acima, o fato do anjo de quinhentos anos ter um voo “engazopado”. “Engazopar” pode significar “enganar”, “iludir”, “ludibriar”, enfim, “o que faz alguém cair em erro ou engano”, o que nos descreve um voo defeituoso, irregular, anormal, um quase voo.

Quanto à pele de Nicolau, esta é “translúcida”, portanto, diáfana, semitransparente, quase sonho, como uma imagem surreal que tem presença frágil, quase inexistente ou quase sólida.

E por fim, a língua do anjo que João não entendia, mas compreendia bem. Questão que poderia parecer dúbia, ambígua, incerta, uma espécie de nem diz que sim, nem diz que não, mas não é – não exatamente. Afinal João diz “embora o entendesse” e não “a entendesse”. O pronome “o” diz que ele afirma compreender o anjo no contexto do que diz, segundo vejo, e não que compreende sua língua propriamente. Portanto, o que considero importante aqui não é essa meia-ambiguidade, mas o fato de, apesar de não entender a língua do anjo, o menino consiga compreendê-lo numa forma mais ampla, a ponto de se comunicarem. Fato que não evita o quase, uma vez que o entendimento entre as partes é anormal, incomum, portanto, a comunicação se dava num quase diálogo.

Como sugeri no final da primeira parte deste ensaio, essa característica de quase, sobre a qual estou insistindo nesta análise, vai além do convívio familiar de João. Encontramos essas mesmas impressões em outras famílias e pessoas que compõem as personagens do livro como a invejosa Jerusa, mulher com claro desvio de caráter, que se faz amiga de Milza (p. 105), mulher de Loredano, de quem Jerusa gosta, para acabar com o casamento dos dois.

Jerusa era uma mulher que não amava os próprios filhos porque eram filhos com um homem de quem não gostava, o que a coloca também na condição de quase: quase mãe, quase esposa; numa vida falseada, casada com um, mas desejando outro.

Há também Saula, uma das amigas da infância de João, tratada como louca, mas que na verdade parece apenas ser alguém que quer fugir da prisão imposta pela mãe, sendo vítima da loucura desta que é toda “fingimento”, “dez caras” (p. 161), como diz a própria filha; o que faz da mãe da menina outro exemplo da falsidade presente nos personagens desse livro.

Como Saula afirma sobre a mãe: “Nem a sobrancelha é de verdade, tudo postiço. Mostra-se culta, letrada, amante dos livros, mas a verdade é que passa os dias em fofocas e tramoias.” (p. 163-4, grifo meu). E no adjetivo “postiço” temos uma boa alegoria da vida dos personagens no livro: vida postiça. E “postiço” tem entre seus significados: “fingido”, “artificial”, “simulado” e “falso”, o que reforça as características dos personagens já tão demonstradas neste texto.

Talvez Vanessa Maranha não tenha escolhido muitas dessas palavras de seu livro de forma premeditada, tendo o intuito de que várias delas funcionassem como metáforas da falsidade que atravessa todo o texto na vida de seus personagens, mas isso ocorre, muitas delas são boas metáforas dos personagens, e não é estranho que isso aconteça mesmo sem a consciência da autora, visto que muitas vezes a própria construção do livro pede isso e dita o caminho à revelia de seu autor.

Enfim, como vimos nesta simples análise, a meia-verdade, o próximo de, o mais ou menos ou o quase como eu quis chamar, dentro de uma característica de incompletude, de imperfeito, deficiente, pendente e defeituoso, é a nuvem que paira sobre não só a história geral do livro ou de seus personagens, individualmente, ela também é parte das ações e características de muitos dos personagem.

Já no que diz respeito ao romance, este de quase nada tem. É um belo texto, escrito com acuidade e profundidade, sobretudo, psicológica de seus personagens. Um livro que merece sua leitura, assim como Oitocentos e sete dias (2012), sobre o qual escrevi há alguns anos no ensaio “O peso de existir em Oitocentos e sete dias, de Vanessa Maranha”. 

Boa leitura!


Referência

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
MARANHA, Vanessa. Contagem regressiva. Paraty: Selo Off Flip, 2014.

2 comentários :

  1. Durante a leitura, coloquei a música: Fake Plastic Trees, uma boa trilha sonora para o texto. Excelente texto como sempre, vou comprar este livro.

    Um abraço!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pela leitura, meu amigo!

      A música é uma boa companhia.

      Abraço!

      Excluir

Voltar ao topo