02/02/2014

fevereiro 02, 2014
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Hoje, 2 de fevereiro, é um dia importante para muitos de nós, para alguns porque é o dia de Yemanjá, para outros porque é o do aniversário de James Joyce, e para outros ainda porque é o dia do seu próprio aniversário, como é o meu caso.

Há milhares de anos pessoas nascem e morrem, claro, mas é das que nascem que vou falar agora. Falarei do que há de divino no nascimento, segundo algumas crenças antigas, mitos que não mais nos governam com a mesma força de séculos, até milênios atrás, porém, ainda se encontram disfarçados em nossos costumes sem que nós, muitas vezes, o saibamos.

Segundo crença latina do mundo Antigo, quando nascíamos éramos confiados a um deus chamado Genius (para o homem, Genius; para a mulher, Juno), nome que muito se aproxima do italiano generare [gerar]; ligação interessante porque, para os latinos, o objeto “genial” por excelência tem sido a cama, genialis lectus — “cama nupcial” —, pois é nela que se realiza o ato de gerar alguém. Esse dia era sagrado e por isso ainda nos referimos ao dia do nosso nascimento como genetlíaco1, mostra da presença, ainda hoje, dessa crença entre nós.

O Genius é representado com um rosto jovem e longas asas, e está sempre do nosso lado, “Por isso o aniversário não pode ser comemoração de um dia passado, mas, como toda verdadeira festa, abolição do tempo, epifania e presença de Genius” (2007, p. 17), diz o filósofo Giorgio Agamben, em seu texto “Genius”2. Ou seja, na comemoração do aniversário deve-se suspender o tempo como se encontra suspensa a idade de Genius, o sempre jovem, e celebrar uma espécie de eterno nascimento, a vida hoje.

Por sua vez, essa nossa proximidade com nosso deus gerador acaba funcionando como uma forma de divinização da pessoa, por isso consagra-se a ele a fronte, e não o púbis — por mais que tanto ele quanto Juno sejam manifestações da fecundidade —; daí o gesto de levar a mão à fronte que fazemos, sem perceber, quando estamos desanimados, o que lembra o gesto ritual do culto a Genius.

Se nos policiarmos, se tentarmos nos recordar de nossos gestos quando nos encontramos desanimados ou se perguntarmos a alguém que gesto é de costume se fazer quando alguém está combalido, constataremos que não é incomum colocarmos a mão na testa como se lamentássemos algo e procurássemos uma saída, nervosos, preocupados, acariciando a testa como se esfregássemos a lâmpada de Aladim — contudo, o que sai dessa lâmpada é outra espécie de gênio, sobre o qual falaremos noutra ocasião. Tocar a fronte é saldar o deus que deve ser sempre aplacado para nos favorecer, pois ele é o que há de mais íntimo em nós.

Assim, os presentes e os banquetes com que festejamos nossos aniversários, ainda hoje, são “uma lembrança da festa e dos sacrifícios que as famílias romanas ofereciam ao Genius no aniversário de seus membros” (p. 15), na época com leitão e cordeiros imolados3, o que não difere tanto de hoje, já que comemos carne em churrascos de aniversários e bebemos vinho ou cerveja. Contudo, ao que parece, originalmente, a festa era realizada apenas com incenso, vinho e cucas (focacce) de mel, acredita Agemben, porque o Genius parecia não gostar de sacrifícios sangrentos.

Mas, como sempre acontece, mudamos algumas coisas, suavizamos o lado do sacrifício, no entanto ainda comemoramos, festejamos o nascimento, mesmo sem percebermos que essa forma de tradição surgiu para celebrar tanto o nosso dia quanto o de nosso íntimo impessoal, deus que nos gerou e deve ser agradado para continuar a nos proteger e guiar.

Neste ponto, talvez muitos de vocês estejam pensando em semelhanças desse deus com algo que conheça por outra forma, com outro mito ou crença religiosa mais próxima de vocês. Bem, há descendências desse deus por aí. Como sabemos, muitas das liturgias e crenças praticadas pelas religiões de hoje, inclusive as cristãs, são aproveitamentos de crenças pagãs anteriores ao nascimento de Cristo — em muitos casos, severamente anteriores — como a data de nascimento do “Salvador”; o Natal, que como explica Claude Lévi-Strauss, em seu O suplício do Papai Noel (1952)4, origina-se de festas pagãs da Antiguidade; os santos católicos que lembram os semideuses Greco-romanos — ou mesmo os deuses menores, abaixo do deus maior (Jupiter, para os latinos, Zeus para os gregos); enfim, mesmo que não com a mesma intensidade ou perfeita característica, Genius também tem seus correspondente em outras religiões, inclusive nas cristãs.

Na ideia cristã esse Genius assemelha-se ao “anjo da guarda”, aquele que nos protege, que está sempre conosco, vulgarmente, nossa espécie de guarda-costas. Mas essa não é a representação que mais se assemelha ao deus do nosso nascimento; a ideia que mais se assemelha ao Genius está na angelologia irânica, e seu nome é Daena: “uma belíssima jovem”, diz-nos Agamben, “o arquétipo celeste a cuja semelhança o indivíduo foi criado” (p. 20), e que vive ao nosso lado em silêncio, espiando-nos e nos acompanhando em todos os instantes da nossa vida; nesse ponto, bem semelhante ao deus latino.

Contudo, um dado merece toda a atenção para não termos surpresas futuras: o rosto desse anjo muda, modifica-se de acordo com o que fazemos ou pensamos, sofre transformações como consequência de nossos atos durante a vida. Assim, na hora de nossa morte, esse anjo vem ao nosso encontro e nossa alma o vê transfigurado — “Eu sou tua Daene” dirá-nos ele, “aquela que os teus pensamentos, as tuas palavras e os teus atos formaram” —, estando aí a parte mais poética: esse anjo pode vir mais belo ou na forma de um demônio terrível, havendo assim uma inversão: nascemos à imagem desse anjo, mas quando morremos é ele que está a nossa imagem, à imagem daquilo que fomos e fizemos durante nossa existência. Por isso, se não quisermos nos deparar com um “demônio” na hora final, é melhor cuidar do que fazemos em vida.

Voltando ao Genius, com o passar da nossa vida, ele duplica-se, transforma-se em dois deuses de atitudes distintas, ou num deus único com duas atitudes distintas, ora nos impelindo ao bem, ora ao mal, sendo ora bom, ora ruim, ora sábio, ora depravado, segundo Horácio. Para Agamben, isso quer dizer que nossa relação com ele mudou no decorrer do tempo; aquele que antes nos orientava tornando “amável nossa existência” (p. 20), torna-se algo que nos persegue os passos, muitas vezes fazendo-nos ter atitudes que não queríamos; por isso há uma representação dele pelos romanos como dois, um ao lado do outro: um com uma tocha acesa na mão, e o outro derrubando a tocha — este é o mensageiro de morte.

Entretanto, durante nossa existência tudo deve ser feito para agradar ao Genius, porque ele é parte de nós; agradá-lo é nos agradar. Dele vem o termo “genioso” — aquele sujeito que insiste, que não muda de ideia quando quer algo, de temperamento forte e obstinado. Por isso nosso desejo obstinado deve ser atendido, porque é Genius quem pede, nosso impessoal, o outro de nós; portanto, se queremos um lápis azul, devemos tê-lo, não é bom contrariar o Genius, se sentimos a profunda necessidade de escrever, devemos fazê-lo porque nosso deus assim o deseja, e não adianta negar, tentar disfarçar, fazer outra coisa, isso poderá custar nossa tranquilidade. Genius deve ter o que quer, para não ter uma vida triste, para nós não termos uma vida triste, de frustrações; afinal, como acreditavam os antigos, genial “é a vida que distancia da morte o olhar e responde sem hesitação ao impulso do gênio que o gerou” (p. 16).

Enfim, nós somos ele e mais, nós somos mais e menos do que nós mesmos, com o Genius que é nossa impessoalidade, mesmo sendo o que há de mais íntimo em nós, porque ele é a personificação do que em nós nos supera e excede. Genius é mais do que a espiritualidade, é a nossa inconsciência, aquilo que fazemos mesmo sem perceber, sem planejar, como nosso lado fisiológico: sentimos fome porque ele sente fome; urinamos porque o Genius em nós quer. Quando sentimos um desejo de caminhar, mesmo não se sabendo necessariamente para onde, querendo apenas sair de casa, isso quer dizer que uma potência impessoal em nós quer andar, nosso Genius existe em algum lugar de nós, pois não somos apenas Eu e consciência. “Genius é a nossa vida, enquanto não nos pertence” (p. 17).

Assim, para adquirirmos a nossa própria identidade precisamos nos afastar do nosso Genius, sair da posição cômoda; o que há de original em nós está nessa luta entre nosso caráter e nosso Genius, o ir e vir entre os dois.  Nosso estilo, assim como o estilo de um escritor, depende daquilo que em nós “é isento de gênio” (p. 21). É como deixar a infância, crescer, seguir com nossas próprias pernas, passando por momentos de sombras, mas tendo uma vida nossa, onde somos responsáveis por nós mesmos; não que completamente o Genius nos deixe, ele é sempre a parte adolescente em nós, a que nos impulsiona a ir, a ter o contato com o outro. Mas precisamos tomar as rédeas do que podemos, criar nossa identidade.

Para concluir, não devemos esquecer o caráter didático, educador dessas crenças e mitos, impelindo-nos a nos comportarmos bem durante nossa vida para evitarmos desagradar nosso Genius, desagradando e “desafortunando” a nós mesmos, para não sobrecarregarmos nosso anjo da guarda, para não transformarmos nossa linda Daena num demônio assustador que nos visitará na hora de nossa morte, deixando-nos desapontados com nós mesmos como acontece com as crianças em relação ao Papai Noel: quem não se comportar bem, não ganha presentes no Natal5.

Os mitos nos impelem a sermos melhores — pelo menos grande parte deles —, costumam ter sua moral da história, mesmo que não explícita, e sempre nos mostram o bem e o mal, este quase sempre hipertrófico. Demônios representam nosso erro na vida, enquanto belos anjos nossa possibilidade de sermos belos. Enfim, esses mitos nos dizem que somos divinos ou uma parte de uma divindade maior, e nascer é ter a oportunidade de uma experiência divina, mágica, pela qual devemos passar aprendendo, saboreando, respeitando nossos limites, mas jamais nos acomodando, sempre indo além, experimentando sem desrespeitar nosso Genius, nós mesmos, nosso ser impessoal que nos acompanha e nos orienta, que nos prega peças, algumas vezes — talvez para nos deixar alertas, talvez porque nos desentendemos —, e que joga conosco um jogo de afasta e aproxima, numa eterna luta para nos firmarmos, sermos alguém de nós mesmos, valorizando nosso aprendizado e o presente de estar vivo porque, no final das contas, o maior presente que nós recebemos ao nascer é o nosso próprio nascimento.

Feliz aniversário a todos!



Imagem: Jean Baptiste Regnault, The Genius of France between Liberty and Death, 1795.
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1 Genetlíaco, que trata sobre ou celebra o nascimento de alguém; o dia do nascimento.
2 Giorgio Agamben. Genius. In: ______. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. A partir deste ponto usarei apenas o número da página para referenciar esta edição.
3 Uma curiosidade: em latim immolatus também pode significar Páscoa que, por usa vez, significa passagem; para os cristãos, celebração da Ressurreição de Jesus Cristo. Portanto, o termo imolar tem, de certa forma, ligação com o nascimento.
4 Cf. Claude Lévi-Strauss. O suplício do Papai Noel. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2008. A primeira edição deste livro é de 1952. Segundo o antropólogo e filósofo francês, o Natal teria se originado de festas pagãs como as Libertas decembris, festas escandinavas e as Saturnais romanas, de onde a Igreja teria se aproveitado da data, das comemorações de dezembro para colocar o seu Natal ali, substituindo assim as festas pagãs existentes. O livro de Lévi-Strauss aborda os vários mitos e costumes que serviram de inspiração para formar a celebração de Natal, e em especial, com o Papai Noel, como a conhecemos hoje. Mas não vamos nos alongar nisso que o intuito deste texto é outro. Aconselho a leitura do livro de Lévi-Strauss para um maior aprofundamento. A leitura é bastante prazerosa.
5 Voltando a Lévi-Strauss e seu livro, antes citado, o que verdadeiramente o Natal, na figura do Papai Noel, parece constituir em seu cerne, segundo o antropólogo, é um momento de iniciação para as crianças e jovens, um rito de iniciação — funcionando como uma forma de disciplinar as crianças através do modo de comportamento premiado, contemplado com um presente do Papai Noel: comportou-se bem terá um presente; comportou-se mal, não terá.

10 comentários :

  1. Texto bastante curioso, William. E bem escrito.

    W. J. Solha

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  2. Obrigado, Solha!

    Você sempre me prestigiando. É bom tê-lo aqui também no dia do meu aniversário.

    Um forte abraço!

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  3. Que maneira simpática e criativa de celebrar o aniversário, William. Parabéns duplos, pelo texto e pelo niver.

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  4. Obrigado, Rita! Que bom que gostou do texto!

    Um abraço!

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  5. Olá, William Lial, espero que as comemorações ainda estejam a pleno vapor. Cheguei! A festa continua e a gente promove alegria todos os dias. O virtual é bom por isso, o coração permanece sempre em festa.
    Estamos sempre aprendendo com você e no seu "niver" não poderia ser diferente. Grata pelos conhecimentos através do texto.

    Felicidades!!! Abraços!

    Sonia Salim

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  6. Obrigado, Sonia.

    As comemorações nem existiram, rs. Eu mesmo fiz a minha com esse texto. Achei que presentear os outros com um tema interessante seria o único mas muito feliz presente que existiria no meu aniversário, não ganhado, mas dado, o que me deixaria feliz, e continua deixando, sempre que alguém vem aqui e ler o texto.

    Obrigado pela sempre presença e pelas felicitações!

    Um abraço carinhoso!

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  7. Muito bom texto, William. Aqui vai um desafio para o 2 de fevereiro que já bate à porta: revelar a contraparte grega do Genius romano, o nosso δαίμων que esbarra em etimologias mais resvalosas. O meu daemon saúda o seu. Leonardo Lacerda (para quem vc confiou o box do Rosa, quem aliás tem um texto genial sobre o Genio em Tutaméia)

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  8. Obrigado, Leonardo.

    Vou ver se posso seguir sua sugestão. É muito boa ideia. Se o tempo me deixar, produzo o texto.

    E boa lembrança sobre o Genius em "Tutameia".

    Abraço!

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  9. Texto sensacional! Parabéns! Muitas felicidades!

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