21/02/2014

fevereiro 21, 2014
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Liguei a TV: passava o tal do BBB ("Deus, o que foi que eu fiz?", diria George Orwell se estivesse vivo). Troquei de canal: havia um cara degolado diante de crianças que sorriam para a câmera e faziam sinal de “legal” com o polegar — já algumas meninas protagonizavam aqueles ridículos coraçõezinhos com as mãos —, enquanto uma apresentadora, em segundo plano, vociferava na telinha, no canto do vídeo, sobre a violência. Troquei outra vez de canal: as ruas eram lagoas em alguma parte de São Paulo — senão em toda a cidade. Troquei mais uma vez: alguém fritava um ovo no asfalto do Rio de Janeiro, enquanto um menino pulava por trás do repórter sorrindo inteligente feito o Bob Esponja. Então troquei de novo: um pastor retirava, a golpes de bíblia, o satanás de uma senhora que ria escancarado “Eu sou o diabo. Eu vou te pegar, safado!”. Troquei novamente: outro pastor falava em sacripantas (há quanto tempo eu não ouvia essa palavra!). Troquei: mais um pastor, este — sem demônio para espancar (a não ser o seu) — cantava desafinado, enquanto uma daquelas cantoras gasguitas gospel berrava ao seu lado seu amor a um tipo de deus que eles inventaram. Outro canal: para minha surpresa, outro pastor que, profundamente emocionado, dizia “Aleluia, irmãos!”, antes de alertar que o dízimo poderia ser depositado na conta do Bradesco número tal — e que não fossem mesquinhos com o Senhor, pois, quanto mais dessem mais receberiam —, finalizando o discurso com um sonoro “O sangue de Jesus tem poder!”. Troquei de canal, troquei de novo, troquei e encontrei um padre católico tentando cantar, mas o gel no seu cabelo brilhava mais que sua performance. Troquei de canal mais uma vez: mulheres rebolando de fio-dental, sorrindo sua falta de sinapse cerebral em um programa que se pretendia humorístico; em outro vi o Silvio Santos cantando um travesti saliente que sorria Gretchen e se via Monica Bellucci. Setenta e cinco canais depois de muitas bundas, bandas ruins e fofocas (de uma apresentadora com sobrenome quase árabe que falava efusivamente de alguém que morreu — para variar) dou de cara com a bombástica notícia de que uma ex-pretença-futura celebridade, dos confins do desconhecido, caminhava na praia de sombrinha e sandálias havaianas, acompanhada por um “Quem é esse?”.  “Obrigado!”, disse eu à TV, “Como vou conseguir dormir depois de uma bomba dessas?” — e sofri por ainda estar vivo em um mundo tão erudito. Dois canais à frente, um apresentador pedia a câmera para si: “Corta pra mim! Corta pra mim!”, enquanto mais dois canais adiante outro dizia “Me dá imagens!”, e estas não vinham, o que o irritava bastante: “Me ajuda aí, pô!”, berrava, em resposta, de braços abertos. Enfim, parei em um programa que me dizia para eu falar que ele me escutava!”. Falei: “Por que você não morre?!” — mas não me escutou. Então fechei a TV e peguei as chaves, já saindo em direção à porta, quando, ao abri-la, meus ouvidos foram agredidos por um samba-enredo e meus olhos por vários loucos que gritavam alguma coisa sobre uma mangueira verde e rosa que estava, aparentemente, entrando com eles (ou neles — não quis saber). Desisti de sair (e quis desistir da vida também, mas meu revolver havia sido confiscado pela operação desarmamento). Fui a minha biblioteca e peguei um livro do Stefan Zweig; porém me lembrei que ele cometera suicídio no Brasil, portanto, como eu não tinha arma, achei melhor não ler esse livro outra vez, e vi o do João Ubaldo Ribeiro que dava vivas ao povo brasileiro. Pensei, “Viva a quê?”. Saí da biblioteca, fui à geladeira, peguei algumas Stellas Artois, liguei o toca-discos, coloquei um vinil do Faith No More e saltei para a faixa “Surprise! You’re dead!”. Ouvi a música e troquei o disco para o Animals do Pink Floyd. Ao ouvir “Pigs” olhei pela janela e vi que haviam vários deles lá fora, mas quando a agulha chegou à música “Sheep” pensei que ela era para mim. Troquei o disco para o Red, do King Crimson — precisava de um pouco de complexidade. Ao final, troquei para o Deadwing do Porcupine Tree — ainda precisava de complexidade, e um peso conceitual. Acabaram-se as cervejas (ou melhor, acabei as cervejas) — eu estava com sede de vida enquanto pensava na morte. Pequei mais seis Stellas, troquei o vinil para I Put A Spell On You, da Nina Simone, mesmo sabendo que quando chegasse à faixa “Feeling Good” eu não melhoraria muito. Já no terceiro sexto de cerveja, encerrei a noite com Kind of blue, do Miles Davis, e dormi com um trompete ao longe. Acordei na manhã seguinte ouvindo a chuva. Pensei que o mundo ia se acabar: “Chovendo na minha cidade?! É o fim!”. Agradeci o novo dilúvio — já estava na hora! —, mas não estava; ainda estou aqui e o dilúvio não — e o sol sim, que agora incendeia a blusa no quintal, sobre a qual vomitei na noite passada.


4 comentários :

  1. excelente crônica, podia até ser um trecho de um bom romance. Penso talvez nesses romances norte americanos de estilo behaviorista. O personagem é descrito através da ação. E aqui num contexto bem brasileiro primorosamente descrito. It's very Good!

    Beijos,

    Cybèle

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  2. Cybèle,

    Você tem razão, há um mesmo um traço behaviorista no texto que eu não havia percebido porque não havia pensado nisso ao escrevê-lo. Quanto a transforma-lo num romance, quem sabe. No momento tenho um parado que ainda não foi publicado.

    Obrigado pela visita!

    Um beijo carinhoso!

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  3. Adorei a cadência desse texto. Adoro textos em que você tem que lê-lo duas vezes, pois na primeira lê correndo com fome de terminá-lo, de tão bom.

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  4. Obrigado, Jhe pertille, pela gentileza da leitura e pelo comentário.

    Abraço!

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