15/09/2013

setembro 15, 2013

O conto vem sofrendo algumas modificações ao longo dos anos. Sequer sua estrutura tradicional com a costumeira forma começo, meio e fim é hoje normalmente usada. O interesse pelo lado psicológico, já muito usado por alguns autores, dentre eles, Clarice Lispector e Virgínia Woolf, é hoje, e me parece que cada vez mais, uma das principais preocupações dos contistas. São textos curtos, algumas vezes nem tanto, com poucos diálogos, muitas vezes nenhum, reminiscências, tempo psicológico, com idas e vindas dentro da narrativa e, em vários casos, uma única voz, normalmente a do narrador que também é o protagonista, falando por todos, reproduzindo a fala dos demais, contando-nos a sua versão dos fatos, dando-nos uma única ótica da história, uma ótica unilateral. Tudo narrado, geralmente, num fluxo de consciência característico do monólogo interior, outra característica que parece dominar grande parte dos contos atuais.

Porém, isso não é mau. É uma forma de contar uma história, mais profunda, no que diz respeito à intensidade dos protagonistas, que são revirados por dentro. Trata-se de uma escolha de seus autores.

Mas o conto ainda mantém estruturas variadas, mesmo as tradicionais, e muitos já dissertaram sobre ele. Machado de Assis disse que “é um gênero difícil, a despeito da sua aparente facilidade” (1973, p. 806). Seu tamanho, com menor quantidade de personagens e enredo condensado, podem dar a falsa ideia de simplicidade e pouca profundidade. Já para H. G. Wells o conto pode ser qualquer peça de ficção que possa ser lida em meia hora. Definição um tanto redutora, mas que diz respeito ao tamanho do conto que, por definição, não deve ser de grande extensão, mas sim uma narrativa curta, um impacto flagrante da realidade, um flash de momento, escolhido para representar uma situação, um tema.

Um pouco mais além vai Julio Cortázar, ao traçar um paralelo entre a fotografia e o conto, comentando sobre a seleção do significativo. Diz ele que em ambos surge a

necessidade de escolher e limitar a uma imagem ou acontecimento que sejam significativos, que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto (p.  151-152).

Em Oitocentos e sete dias (2012), livro de contos de Vanessa Maranha, essas características estão presentes. O livro é dividido em duas partes, Livro 1 e Livro 2, e entre elas há algumas diferenças. Na segunda, os contos são mais curtos e mais psicológicos, muitas vezes verborrágicos, com características mais contemporâneas em sua estrutura do que os da primeira parte, mais longos e com maior complexidade estrutural, mas que, porém, também não chega a ser povoada por contos tradicionais, apesar de seus textos possuírem mais desenvolvimento da história, mais trabalho nos personagens e no tema, bem como no tempo que é mais compassado.

Na primeira parte do livro os contos são mais heterogêneos, são de características distintas entre si, também nos fazendo lembrar de contistas passados. Por exemplo, no primeiro conto, “Castiços”, julgo ser fácil para qualquer um se lembrar de Guimarães Rosa, pelos neologismos e pelo próprio narrar, numa linguagem que lembra a do mineiro, com seres do interior, a ignorância e uma construção frasal, por vezes, complexa, como acontece em Rosa.

O conto retrata uma família bizarra, incestuosa, ignorante e fatalista. Um texto bastante inventivo e que traz momentos muito representativos de uma realidade de exclusão, não só impingida, mas também voluntária por muitas famílias que se negam a fazer parte do mundo, mantendo-se na ignorância, como demonstra o trecho no qual Antenor, um dos filhos da casa, enrabicha-se pela filha do coronel e, a partir daí, sai a andar com um livro debaixo do braço, metido nos estudos. Nas palavras do irmão, o narrador do conto,

Esse nosso irmão ficou mais aluado ainda, fascinado por papéis, sempre um livro debaixo do braço, renegando a soberba do analfabetismo, estirpe dos orgulhosos iletrados, longe da contaminação dos saberes maiores do mundo (2012, p. 12, grifo meu).

Na parte grifada já se vê o tipo de pessoa que formava aquela família, que vivia ao largo da casa grande, de onde eram empregados, morando num pardieiro. O que corrompia alguém, para eles, era o saber. Crença perpetrada pelos pais que comandavam a família com dureza. Miseráveis, vivendo como porcos, que não se permitiam se misturar com os outros; por isso, praticavam a procriação entre irmãos.

Nas descrições, eles muito se assemelhavam a personagens cruéis e desequilibrados de filmes sobre delinquência aberrações. Contudo, também são discriminados por serem quem são perante uma sociedade, aparentemente, elitista, o que vemos no relato do casamento do irmão narrador, quando os pais não puderam comparecer “porque não era gente a quem então se permitia pisar o mármore sagrado da igreja” (p. 15)¹ .

Mas em meio à sujeira ignominiosa dos personagens, também há espaço para belas frases filosóficas, como a que se refere à morte do pai: “Ninguém parecia lamentar a ausência que de agora em diante ele seria, porque sempre o fora. De quantas ausências é feita uma presença?” (p. 18, grifo meu). E há também espaço para o inusitado, além do já encontrado na forma de vida desses excluídos, uma característica que não estará só nesse conto, mas também em outros dessa primeira parte do livro de Vanessa: o Realismo fantástico à Garcia Marquez, com seus devidos ares surreais: a mulher do narrador de “Castiços”, que desde muito tempo já mostrava uma pele que engrossava, enrijecia-se e escamava, acaba por sofrer uma extraordinária metamorfose. Quando o irmão caçula do marido resolve engendrar sem-vergonhice com ela, paga caro por isso:

Longa e grossa calda de lagarto se desenrolou de sua região lombar para solapá-lo na surra que o safado ainda não havia recebido inteira. Ao fim da pancadaria, a calda serrilhada que jamais supusera possível e tamanha estendida no chão como um véu de noiva, Ismênia à frente do espelho demoníaco lhe acusando a verdade, o terror tomando conta de si. Toa ofendida ficou com a própria imagem que, rápida e rebolante, em fuga de si mesma, embrenhou-se no mato em direção ao riacho para nunca mais aparecer claramente (p. 21).

Desde então a mulher só aparecia escondida, nunca mais voltando ao convívio familiar, embrenhada nas matas, vivendo de comer bichos, espreitando de longe o marido e a família que ficara para trás.

Outros contos dessa primeira parte do livro, também são bastante criativos, como “O cordovês armênio”, uma bela história de um marido que some e volta como um cigano enorme, bizarro, e seus comparsas da mesma linha de esquisitice, como veem os habitantes da cidade surgir de dentro do barco: “De dentro da embarcação de casco coberto por liquens, os locais viram surgir uma população de estranhos, bestiário” (p. 26). E aos olhos da mulher abandonada pelo marido, o cigano de hoje, que voltava monstruoso, nesse circo de horrores se encontrava

Uma gente exótica. Somavam-se ainda ali, constatava, mulher de um olho só; criança de três pernas, golpistas do ouro; um licantropo, homens rapsodos, uma mulher que apregoava seus cento e oitenta anos de vida em aparência de vinte; comedores de fogo; atiçador de furações; fabricante de chuva; velho com dente de ferro; moça hirsuta” (p. 27).

No entanto, mesmo diante de tamanhas monstruosidades, o conto não nos deixa entregues apenas às bizarrices; o estranho dos personagens dá-nos o poder de refletir sobre as diferenças, afinal, até que ponto o que chamamos de monstruosidades são merecedoras de preconceito e de desterro? Até que ponto a culpa de suas atitudes estranhas e seus modos, que julgamos incorretos, não são também culpa da sociedade que os obrigou a viverem à parte e a terem que descobrir seus próprios meios de sobreviver?

“Ludmila”, outro conto dessa primeira parte, também dotado desse Surrealismo impregnado num Realismo fantástico como os dois contos anteriores — aliás, alguns dos melhores contos de Vanessa são esses de cunho fantástico, pelo seu maior grau de inventividade e estrutura do enredo —, “Ludmila” fala sobre a busca pela humanização de uma moça que nasceu de mágica; uma espécie de Emília, de Monteiro Lobato, nascida de uma escultura, ganhando vida, porém, completamente desnorteada, quase bruxa, com poderes de sedução e comportamento perigosos, mas que busca um lar, ser gente, encontrar-se.

Porém, ela nasceu como uma diaba, “de cabelos cacheados, rosto afilado, olhos ambarinos” (p. 34). Nasceu do desejo idealizado do escultor e de sua mãe, tão intensamente desejada pelo homem que a imagem se despregou, em agonia, da cepa, “dolorida e inquieta como num parto” e ganhou “tridimensionalidade movente e audível à sua frente. Primeiro num lamento quase choro, depois num urro” (p. 34), para em seguida acabar copulando com seu criador, ali mesmo na frente de sua mãe, numa cena inusitada: “Ao toque das suas peles, um odor de iodo e enxofre infestou o ambiente” (p. 35), deixando a senhora Nadja, de “plumagem decadente e arrogante”, espantada e assustada: “ — O demônio! Foi o demônio que trouxemos para essa casa, Max, meu filho!” (p. 35). Contudo,

Terminado o repasto viscoso, untuosidade de sangue ralo pingado no chão, Max perdido em intenso gozo, a diaba correu à rabeca velha sobre uma cadeira de vime e dela arrancou acordes como cavacos desafinados, depois, sons tão sibilantes e de tal amorosidade que, naquela noite, lua alta, a cidadela ao redor, todos os viventes aconchegados em suas camas sentiram a lascívia engendrar no povoado uma descendência de embriões que em nove meses fariam dobrar a taxa populacional daquele lugar (p. 35).

E fugiu: “Tendo ela própria, nomeada Ludmila, cumprido sua urgência reprodutiva, saiu da casa como pássaro aflito atravessando a janela, carregando no ventre a duplicação de Max” (p. 35).

Outros contos ainda merecem destaque nessa primeira parte, como Adelícia, uma humanização da prostituição, mostrando seus entremeios e sofrimentos da profissão. Uma mulher que começou “na vida” imaginando que seria resgatada desse mundo por um homem de valor, o que nunca ocorreu. Perdeu os sonhos. No entanto, antes fez faculdade, foi casada e traída pelo marido, com quem não teve filhos; tendo-os depois de clientes. Filhos que ajudou a educar, mas que a abandonaram, a exceção do que virou bandido, visitando-a, vez por outra, com uma cesta básica.

Enfim, a primeira parte do livro tem em comum a extensão e a forma dos contos, no que diz respeito à complexidade da narrativa, porém com diferenças nos temas e gêneros, e mesmo no estilo. Enquanto alguns possuem características regionalistas na linguagem, como nos primeiros, outros tem linguagem culta; enquanto uns possuem características surreais, de inspiração no realismo fantástico, outros existem na realidade comum.

Já na segunda parte, os contos são mais curtos, mais afeitos ao que vemos hoje em dia em muitas das novas composições: grande fluxo de consciência, acima da ação que, praticamente é inexistente, e do enredo que muitas vezes é pouco perceptível. Seus protagonistas, quase sempre, narram-se num monólogo interior verborrágico, falando, rememorando cenas passadas que se entrelaçam ao presente; seus narradores descrevem detalhes interiores e exteriores de seus personagens — algumas vezes eles mesmos— e de suas vidas, pois, oniscientes e onipresentes esses narradores nos contam muito, como no conto “pelo jade daquele mar parati”; uma espécie de inventário de relacionamentos diversos, de onde as primeiras frases já dão o tom de esvaziamento, da modorra vital e do dissabor na vida, onde o discurso escorre pelo texto, num fluxo contínuo: “Eva escorregava com alguma competência, nenhuma poesia, pela sensaboria dos dias que se seguiam cinzentos como enfim eram seus cabelos de vestígios aloirados” (p. 97).

Assim, cinzento e desprovido de poesia é o cenário e a vida dos personagens desse conto, descoloridos como os cabelos, antes aloirados, da personagem Eva, em vestígios de uma vida que não era plenamente vivida. São seres perdidos, sombras como Lea, outro personagem desse inventário, “cadavérica, a pele como borracha esticada revestindo vida opaca, encharcada de anfetaminas, cocaína, uísque” (p. 100).

A esse conto, outros vão somando-se em maior número do que no Livro 1, já que são menores. E, também devido ao seu tamanho, estrutura e forma, são mais flagrantes, destinam-se a contar cenas isoladas ou reminiscências de uma vida rememoradas num instante que abarca toda uma história, como em “Morrer de amor”, conto que se assemelha à veia discursiva de A paixão segundo G.H. (1964) ou Água viva (1973), de Clarice Lispector, no relato de alguém que ama desesperadamente, numa paixão desmedida, desejo do outro, de não viver só, “Só me sei a dois” (p. 114), como diz a personagem Mirna que, certo dia, sonha e assim, impressionantemente e instantaneamente, apaixona-se por Aluísio:

Chegou com cheiro de jasmin, naquele sonho: eu te sonhei, meu amor. aportou em fome, sede, ânsia. Foi ali, no noturno silêncio daquela madrugada, na violência dos caminhos da inconsciência que Mirna, sozinha, se apaixonou fundo por Aluísio. Numa fundura tal que amanheceu não radiosa como se suporia, mas arroxeada em orelhas sob os olhos, empalidecida como se a noite lhe tivesse drenado impiedosa até a última gota de sangue (p. 110).

Mirna, que também fala de seus ex-amores, parece em busca do amor que idealiza, e essa atitude trouxe-me à lembrança Érika, personagem de Carola Saavedra, no seu livro Paisagem com dromedário (2010). Diz Érika:

Talvez no fundo seja sempre assim, a gente traz algo inscrito e passa a vida inteira procurando alguém que se encaixe nessa nossa inscrição, que possamos encaixar como uma peça de um quebra-cabeça. E ficamos sonhando com isso e tentando transformar as pessoas em algo que possa ser socado dentro das linhas que traçamos, ou que trazemos traçadas, inscritas em nós (p. 140-141).

Nessa segunda parte do livro, um dos melhores contos, ao meu ver, é “A gargalhada”. Com um narrador já morto, um defunto-autor, sentindo ainda a falência do seu corpo — “meus líquidos todos visguentos, eu os sinto parados feito poças de água podre” (p. 132) —, descrevendo sua família e suas peculiaridades nefastas, dotado de discurso e humor cáustico, à moda de Brás Cubas, de Machado de Assis, até mesmo citando os vermes que comem suas carnes — “os vermes já revirando minhas vísceras” (p. 132) — como fez o do Cosme Velho na dedicatória de suas memórias.

O morto de Vanessa Maranha vê a miséria moral dos que o rodeiam; ninguém presta na sua visão, a não ser sua amante, que lhe visita no velório sobre os olhares de ódio de seus filhos, e João Carlos, seu primogênito que o odeia. Quanto aos demais, “Eu dou banana para as suas Hosanas, Aleluias, Obalauês, Saravás e Armagedons” (p. 132), diz o defunto sobre a suposta tristeza religiosa dos seus parentes e amigos no velório.

Nesse ínterim, o morto quase revive no caixão, sentindo emoções e até mesmo as lágrimas de sua amante que lhe escorrem para a boca. O conto é divertido, bem humorado, nas depreciações do protagonista, e inventivo, sem a preocupação que assola o mundo moderno do politicamente correto, onde tudo acaba bem, feliz como nos contos de fadas. Aqui está mais para realismo fantástico onde tudo acaba como pode acabar normalmente, principalmente com o final estrondoso da gargalhada do morto, liberada após o barulho de vozes que se faz ao seu lado: 

Veio como uma gargalhada de pavor, espanto, um esgar horrorosamente alto, como nunca pensei haver som semelhante em qualquer parte de mim. Abafada, eu já todo lacrado, saiu retumbando a gargalhada. Houve quem escutasse (p. 136).

Mas “Ménage”, o conto seguinte, também é criativo. Uma história e dois lados. A mesma história é contada pelos dois personagens principais da trama: uma mulher ciumenta que pensa que seu marido a traía com outra, quando, na verdade, ele apenas visitava sua mãe, sem que ela soubesse, devido as duas não se darem bem; e ele, que na segunda metade do conto, discerne sobre a inutilidade da esposa, controladora e desagradável: “o que eu lamento é que Rosenilda não se disponha a nenhuma real utilidade. Penso que chega a ser injusta a distribuição dos talentos entre os seres humanos, uns tão bem dotados, outros com quase nada, na base da sobrevivência” (p. 140-141). E Rosenilda, tomada pelo ciúme e por uma espécie de necessidade de estar certa sobre a infidelidade do marido, seguindo seus passos, investigando, dá-nos a impressão de que se decepciona ao ligar para o marido e ouvir pelo celular a voz ao fundo, “clara, anserina, grasnada, quase causativa, já meio grave pela idade” (p. 139), a voz da sua sogra.

Indo mais à frente, entre os últimos contos do livro, há “Klaus”, o “boa-gente”. Seu nome, além de esconder “grandeza e estirpe, denominação de branco, de ariano, de alemão” (p. 156), como ele mesmo diz, também simboliza, entre outras coisas, e segundo definições de significados de nomes, uma pessoa prestativa, o que concorda perfeitamente com as características do Klaus de Vanessa Maranha.

Através do que parece uma entrevista, Klaus declara ter nascido para ser segundo, não por ser menos, mas por ser escudeiro, servo da ajuda ao outro, aos restos, como ele diz, aos loucos e desvalidos; um homem que dedica seu tempo e atenção a cuidar dos necessitados. Um coração grande, segundo as palavras de seu pai, “Caminhe por essa aleia de poesia que em você é horizonte largo — dar a mão ao outro e tornar-se imenso, meu filho” (p. 156), ao que completa o próprio Klaus:

minha passagem aqui é a de seguir cavaleiros andantes e ser deles o escudeiro na vasta e longa noite em que estão mergulhados, sabendo pouco, pouquíssimo, só mesmo uma enfermagem básica a mantê-los sobrevivendo: fazer a latrinagem (alguém tem que fazê-la), escutar-lhes as esquisitices, amainar seus furores suicidas, banhar-lhes a cada qual a alma manca (p. 157).

Prestativo e dedicado aos menos validos, exemplo de bondade e desprendimento, dedicação e entrega, Klaus diz ajudar em nome da beleza: “Você pergunta a razão desse meu ofício? Não vê? Voltemos ao início da nossa conversa. A palavra é só essa: beleza. Utilize-a como achar melhor” (p. 158). A beleza da vida, a beleza do humano, da humanidade, todas nele e no que ele ver daqueles que protege e ajuda, há beleza à vontade a ser escolhida e utilizada como preferir.

Numa visão geral, alguns pontos são bastantes presentes nos contos. Sexo está em todos eles de alguma forma, porém, sempre contextualizado, sem vulgaridade. Alguém sempre o busca ou o deseja de alguma forma, como para aplacar a solidão ou por uma compulsão etc. Mas, acima de tudo, há a característica do ar estrangeiro, a margem em que vivem os personagens. Os protagonistas não são seres felizes, estão sempre incomodados com a vida, sozinhos, buscando saída, normalmente em alguém, uma companhia que lhes amaine o vazio da existência.

E Vanessa Maranha sabe como retratar tudo isso, dosando os textos com humor, quando lhe parece possível, aprofundando na dor, quando o personagem pede essa abertura, e mantendo o interesse do leitor pelos textos, com um bom nível de suspense e epifania que revela as entranhas humanas, em seus medos, paixões e relacionamentos, num texto enxuto, sem excessos rebuscados ou floreios desnecessários, na medida da escrita consciente de seu papel literário.

Por fim, tenho como uma das formas que uso para identificar a qualidade de um texto, quanto ao seu atributo de inventividade, forma e estilo, o nível de distanciamento que, como leitor, adquiro do autor do texto que leio. Explico: mesmo que o autor seja amigo, próximo de alguma forma, não o identifico ao ler seu texto, pareço ler outro, distante, alguém fora do meu círculo de amizade; não o desconheço de todo, mas, na leitura, consigo vê-lo como escritor, e não como o amigo da mesa de bar, devido a sua qualidade de criação e de linguagem que o afasta do mundo ficcional como pessoa de carne e osso. Quando um livro assume uma independência da existência humana de seu autor, isso implica que uma obra de arte foi criada verdadeiramente, pois uma obra até tem um criador, mas este não figura idiossincraticamente em suas páginas, ele a libertou de si logo que o texto foi concluído. Não que não possamos reconhecer certas “maneiras” características da personalidade de seu autor, mas que essas não influenciam no que enxergamos na leitura, não nos amarra à personalidade do próprio autor, reconhecendo nos personagens ele mesmo, como se lêssemos sua biografia e não sua invenção. E é foi assim que me senti ao ler Oitocentos e sete dias de Vanessa Maranha, com quem converso de vez em quando.




BIBLIOGRAFIA:

ASSIS, Machado de. “Instinto de nacionalidade”. In: ______. Obra completa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1973. V. 3.

CORTÁZAR, Julio. "Alguns aspectos do conto". In: ______. Valise de Cronópios. Trad. Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974. p. 147-166.

MARANHA, Vanessa. Oitocentos e sete dias. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012.

SAAVEDRA, Carola. Paisagem com dromedário. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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¹A partir daqui será identificado apenas o número da página para as citações do livro de Vanessa Maranha.


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