30/06/2009

junho 30, 2009
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― O que há com você?

― Nada!

― Por que não vai trabalhar naquela fábrica?

― Não consigo me ver trabalhando em algo assim, não posso viver fazendo algo que detesto.

― Mas você tem que fazer alguma coisa, não pode ficar esperando que o dinheiro caia do céu, que Deus lhe dê tudo de graça.

― Deus não existe, o homem criou Deus e não o contrário.

― Isso é blasfêmia!

― Não se “Ele” não existir.

― Mas você...

― Chega! O importante é que não considero vida acordar todos os dias para trabalhar em algo que não suporto; algumas pessoas talvez possam fazer isso e viverem naturalmente, mas não eu, sou verdadeiro demais para mentir pra mim mesmo.

― Mas você tem que sobreviver.

― Não, não tenho, eu tenho que viver.

― É difícil compreender você, querer viver sempre a sua maneira.

― E há outra forma de viver?

― Está bem, vou deixá-lo com seus sonhos.

― Certo, tchau!

Não sei por que ainda me explico pra ela, não me entende; eu só quero ter prazer na vida, não para isso que nascemos: sermos felizes, fazermos o que quisermos e sabemos fazer? Estou tão errado em querer o meu caminho e não o dos outros: o da covardia, o da desistência, o da vida sem viver? Antes morrer que “viver” mentindo pra mim mesmo. Há algo que sei fazer, e é isso que quero fazer. Não, não é arrogância, é desejo de viver de verdade. O mundo não faz sentido se preciso ser outro, se não posso trabalhar com aquilo que sei fazer. A Anna não me entende, não vê que para alguns de nós a vida só faz sentido se sorrimos branco com o que damos ao mundo. De que vale um sorriso amarelo? De que vale um sim com gosto de não? Ah, o mundo só me sorrir se eu sorrir para ele; se eu lhe mostrar os dentes careados de tristeza, “Veja como estou feliz, estou dançando, veja, o mundo não me sorrir”, “Mas que diabo de dança ridícula é essa?”, perguntaria o mundo, “Por acaso você é algum palhaço chorão sofrendo um ataque epilético?”, não, não posso. Antes mesmo do mundo, eu me rejeitaria por ter cedido. Não sou um dos Possuídos do século XIX, não sou Nechaiev¹ , nem quero ser, não sou niilista, não sou Bazarov², de Turguêniev  ― talvez uma espécie de Niels Lyhne³, de Jacobsen ―, mas sei que não admito a covardia, não admito não viver pelos meus meios e desejos. Louco?! Talvez. Mas me chamo Serguêievitch, de cabeça erguida, e sempre serei esse Serguêievitch, ou não serei Serguêievitch nenhum.



Imagem: Gustave Courbet, Auto-retrato.
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¹ Revolucionário russo, niilista e ateu, do século XIX, que acabou virando tema de Dostoiévski em Os Possessos.
² Personagem niilista do escritor russo Ivan Turguêniev, em Pais e Filhos . Esse livro também é apontado como o responsável pela propagação da palavra niilista pelo mundo.
³ Personagem ateu do livro homônimo do dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Considerado por muitos, entre eles, Carlos Drummond de Andrade, um dos melhores romances da história.

4 comentários :

  1. Se diferente fosse, seria "Avatar"!!
    estou torcendo sempre pelo teu sucesso,
    que teu retorno nos traga,o beneficio de grandes leituras.
    Boas energias, menino gênio
    Maei Amorim

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  2. "Antes morrer que “viver” mentindo pra mim mesmo".

    Esta frase diz tudo.

    Abraços e, bem vindo de volta!

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  3. Queria ter coragem para não mmentir o tempo todo, mas é preciso sobreviver!!!!!ou ser personagem!!!!!


    beijos ternos e bom retorno

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  4. Mari:

    Obrigado, sempre, professora.

    Um beijo!


    Neto:

    Um abraço, meu querido!


    Marcia:

    Eu entendo você, menina bonita, não é fácil o mundo real.

    Um grande beijo!

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