09/05/2007

maio 09, 2007
 

Esses dias, reli uma obra que há muito, ao que me parece, não se comenta, As Cosmicômicas (1965), de Ítalo Calvino. Um deleite para os que gostam de aventuras e uma boa doze de graça fantástica. Fantástica porque sua composição tem essa característica em todos os sentidos: desde sua elaboração, em acordo com a literatura fantástica das décadas finais do século XX – possuindo uma causalidade de caráter mágico ligando os acontecimentos ao decorrer da narrativa, como diria Borges -, à enorme capacidade inventiva do autor. O que faz dessa obra uma das mais bem elaboradas, bem humorados e agradáveis de se ler que o escritor produziu.

O livro é repleto de humor, um humor refinado, daqueles que nos faz rir sozinhos, dada a sua mistura ímpar de cientificismo, relativo à criação do universo, e aventuras completamente absurdas; onde cada conto tem início com um enunciado científico de homens extremamente respeitados, como Darwin e G. P. Kuiper, servindo de base para histórias completamente inimagináveis, sob a ótica de um narrador – também herói dessas experiências fantásticas – que relata tudo sem a menor cerimônia, como se cada momento descrito fosse a mais pura verdade.

Para citarmos um exemplo: o conto “Ao nascer do dia” traz um enunciado sobre a solidificação dos planetas do sistema solar, que saíram de um tempo gelado e escuro para o momento em que o sol começou a se condensar, subir a temperatura e emitir radiações pelo universo. E o conto que se segue inicia-se com a seguinte fala do narrador-protagonista:

Uma escuridão danada aquela, confirmou o velho Qfwfq, eu era ainda criança, mal me lembro. Lá estávamos, como de costume, com papai e mamãe, vovó Bb’b, uns tios que nos visitavam, o Sr. Hnw, aquele que depois virou cavalo, e nós, os pequenos.
É nesse clima que segue todo o livro. Momentos como este, de alguém que, além de ter presenciado o surgimento dos planetas, teve um colega que, meramente, virou cavalo. E tudo contado com a maior tranqüilidade. História de pescador é “fichinha” na frente das que o senhor Qfwfq conta. Então como não se divertir diante de tanta liberdade em narrar o absurdo? Onde poderíamos encontrar alguém que, como o nosso protagonista, tenha estado em todos os momentos importantes da criação e formação do universo? Alguém que estava aqui mesmo antes do aqui existir?

As aventuras desse senhor – que parece ter milhões de anos de idade –, inclui, dentre outras, amores, desilusões, ciúmes em queda livre pelo universo vazio – isso antes da formação das galáxias quando nosso narrador, Úrsula H’x, mulher “muito bonita de se ver” que “mantinha na queda uma atitude ágil e descontraída”, além de, ao cair, sempre estar “ocupada em lixar e polir as unhas ou em passar o pente nos cabelos longos e lisos”, e o tenente Fenimore caíam sem parar pelo universo:

Cair no vácuo como eu caía, nenhum de vocês sabe o que isso quer dizer. Para vocês cair significa tombar. [...] Pois lhes falo, ao contrário, de um tempo em que não havia embaixo nenhuma terra nem coisa alguma de sólido, nem mesmo um corpo celeste na distância que pudesse nos atrair para sua órbita.
O senhor Qfwfq foi molusco, peixe e “também, em certo período, dinossauro – digamos, durante uns cinqüenta milhões de anos”. Foi o último dinossauro sobrevivente que, inexplicavelmente, viveu entre os humanos depois da extinção de sua espécie, como se após viver só escondido em altiplanos desertos, e “sobrevivido às emboscadas, às epidemias, à inanição, ao gelo”, houvesse sofrido uma mutação e, aos poucos, se transformasse num humano. Vivendo momentos de terror por medo de ser descoberto dinossauro num tempo em que os humanos matariam qualquer dinossauro sobrevivente; além de se sentir discriminado onde vivia por aqueles que sentiam algo diferente nele.

Assim como esse conto, “Os dinossauros”, os outros também nos trazem algo mais do que o hilário. Calvino inclui discretamente faces do caráter humano em suas histórias, como a de que a trapaça existe desde antes de existir qualquer raça – num conto sobre um jogo de perseguição de galáxias – ou o medo de ser diferente, como o drama em que vive o dinossauro. Revelando que, mesmo diante de tantas peripécias absurdas, o leitor pode ver a humanidade nesses personagens cósmicos milenares de nomes impronunciáveis. Sim, impronunciáveis. Esses personagens têm nomes como: Qfwfq, capitão Vhd Vhd, Xlthlx, Pfwfp e outros do gênero. Como se pronuncia isso? Apesar do absurdo, no final, você tem a sensação de que filosofou o ser humano enquanto ria.

Voltando à questão da diversão do texto. O que o torna mais ágil e solto é que tudo, todas as histórias cósmicas, com suas mesclas de ciência e invencionices, ocorrem de forma rápida; milhões e milhões de anos e transformações universais são contadas como se houvessem passado poucos minutos; milênios passam em segundos. Nosso herói fala como se tudo houvesse acabado de ocorrer, há alguns poucos anos atrás.

Entretanto, não pensem que o autor apenas devaneou e saiu inventando histórias. Ao lermos os textos temos a nítida certeza de que Calvino pesquisou nas ciências exatas – física, química, matemática etc –, dada a sua precisão em descrever transformações e dados científicos; dados que são usados de forma “séria”, digamos assim, para apoiar e tornar mais engraçado e fascinante cada um dos contos.

Então, sem mais delongas, para aqueles que gostam de uma leitura leve, mas não boba, as histórias cosmicômicas de Ítalo Calvino vão ser uma ótima companhia. Portanto, vá à livraria mais próxima, pegue seu livro, diga a todos para não o incomodar porque você estará ocupado por alguns milhões de anos, que se passarão em algumas horas, e leia suas páginas como se um velho contador de histórias estivesse na sua frente a contar causos de épocas que já se apagaram.




CALVINO, Ítalo. As cosmicômicas. trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 (1965).

Imagem: capa do Livro.

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